Katmandu 2
- Admin
- 6 de nov. de 2014
- 9 min de leitura
Atualizado: 10 de fev. de 2023

O retorno a Katmandu foi inusitado porque nós chegamos um dia antes do combinado. Tínhamos deixado reservado um quarto no Ganesh Himal para a volta, porém justamente porque eu estava doente nós compramos a passagem para voltar antes e tentar ir em algum médico na capital.
Para nossa tristeza não havia quarto vago no Ganesh Himal e desoladas, pedimos para a moça que achávamos ser uma das donas, guardar nossas malas e então sairíamos para buscar outro alojamento para aquela noite. Ela lamentou, mas disse que nada podia fazer. Quando passamos pela saleta que dava no jardim, Mr Karma nos viu e veio correndo conversar. Contamos o ocorrido e ele ficou desconcertado não poder nos receber. A Roberta comentou que viéramos antes porque eu não estava bem e ele disse que ia dar um jeito que arrumar outro hotel para nós. Disse para irmos tomar um chá enquanto ele tomava as providencias, e mandou nos servirem no jardim.
Ele logo voltou e pediu para os funcionários dele levarem a nossa mochila para o hotel ao lado que sempre víamos do jardim do Ganesh Himal. Parecia um hotel recém-reformado, a pintura era nova e se chamava Allied Hotel.
Quando entramos no saguão achamos muito esquisito. Não parecia um hotel normal e sim a sala de estar uma casa indiana cheia de gente falando ao mesmo tempo, a TV ligada com o som bem alto, mulheres fofocando, crianças brincando, uma algazarra, uma zona. Os funcionários de Mr Karma se olharam e depois olharam para nós espantados. Subimos e nos colocaram num quarto horrível. Era pequeno, escuro, parecia sujo, ar parado, antigo. O banheiro era bem meia boca e logo vimos que não tinha água no chuveiro.
Se eu estivesse bem nós teríamos saído na hora com as mochilas nas costas em busca de um lugar melhor mesmo que fosse por uma única noite, porém eu estava tão mal porque a viagem da volta teve um mesmo zigzag da ida e meus enjoos pioraram. Não dava coragem de deitar naquela cama nem de encostar o pé no chão, então nós pegamos os paninhos que sempre levamos em viagens de trem ou ônibus forramos as camas e eu deitei, porque não aguentava mais ficar em pé. A Roberta saiu e foi até o pronto socorro para saber se atendiam estrangeiros por que era uma clínica pública. Ela voltou, disse que falara com o médico e ele iria me atender;

A Chhatrapati Free Clinic funcionava 24 horas e ficava bem pertinho do hotel. Todas as vezes que saímos da rua do hotel em direção a Thamel ou a Durbar Square, a víamos.
Estava vazia, não tinha nenhum paciente e quando eu entrei várias enfermeiras vieram e me levaram para uma maca porque elas já sabiam o porquê eu estava lá. Elas me ligaram ao eletrocardiograma e um jovem médico muito competente me examinou. Ele viu tudo, fez muitas perguntas e apertou todos os meus órgãos, olhou os olhos, a pele, as unhas, sentiu os pulso, fez um exame completo.
Disse que eu estava com gastrite, enquanto quatro enfermeiras participaram curiosas. Ele falou que o inchaço nas pernas e nos pés podia ser algo relacionado ao voo e a circulação. Disse para eu não esquecer que estava num lugar mais alto, e que quando voltasse ao nível do mar, talvez tudo melhorasse.
Receitou alguns remédios eu poderia pegar ali na farmácia do posto ele disse para evitar comidas acidas e tomar chás e líquidos quentes para aquecer o fígado. Lembrei que o médico coreano de Pokhara e o médico doutor em farmácia indiano de Aurangabad também tinham me dito para esquentar o fígado.
Agradeci, passei na farmácia, comprei os remédios que foram muito baratos e voltamos ao Ganesh Himal. Mr Karma tinha dito que poderíamos ficar lá o tempo que quiséssemos. Na sala de estar, no restaurante, no jardim, enfim, onde quer que fosse até a hora que quiséssemos ou até a hora dos dois hotéis fecharem.
Ele quis saber todos os detalhes da minha consulta médica e disse para eu encher a minha garrafa com água quente e beber o tempo todo. Eu achei muito estranho, mas imediatamente fui na máquina de água quente do hotel, que sempre usávamos para fazer chá no quarto, e a enchi de água. Mostrei os remédios, contei que estava com gastrite e ele disse que ia fazer um jantar especial para mim.
Levou-nos para o jardim, disse que deveríamos esperar lá. Mandou trazerem chá, colocou mantas em nossas costas e sobre nossos colos, assegurou-se de estarmos confortáveis e saiu. Algum tempo depois nos serviram uma sopa tipo Thukpa, uma sopa tibetana, sem condimentos e acompanhada com pãozinho bem gostoso.
Foi muito bom saber que o Mister Karma gostava tanto de nós. Senti-me em casa e a Roberta também. Ele não tinha obrigação nenhuma de arrumar hotel para nós, nem de fazer comida especial para mim e no final nem cobrou por esse jantar.

Como não estávamos hospedadas lá naquela data, pedimos a conta, mas ele não mandou e quando nós fomos embora de Katmandu, depois de uma breve estadia que começou no dia seguinte a todo esse evento que eu estou relatando agora, ao pagarmos pela estadia e café da manhã, não constava esse jantar e nem o desjejum da manhã seguinte. Apenas uma diária e o desjejum da manhã em que saímos do Ganesh Himal.
Depois de tomar a deliciosa sopa e de estamos bem aquecidas, voltamos para o pesadelo. Observando melhor, percebemos que muitas pessoas moravam lá, então na verdade era um cortiço. As portas dos quartos ficavam abertas, as pessoas ficavam conversando, gritando, falando bem ao estilo indiano e então a Roberta abriu a porta e gritou "Shut up everybody", e continuou, "vocês não estão na casa de vocês!", "isso aqui é um hotel e não uma favela, portanto calem a boca porque eu quero dormir". Isso foi necessário porque já tínhamos reclamado no saguão, já tínhamos pedido gentilmente, e fomos ignoradas.
Quando ela se calou, o silêncio era sacramental. Nós só ouvimos as portas se fechando uma a uma. Alguns minutos depois, ouvimos algumas portas abrindo, pessoas sussurrando e resmungando. A chamada de atenção, não adiantou muito e nem por muito tempo. Por várias vezes a Roberta teve que reclamar.
Porém o mais bizarro de tudo aconteceu no dia seguinte. Muito cedo começamos a ouvir uma movimentação nos corredores: alguém subia as escadas, batia em uma porta, falava algo em hindi ou nepalês e a porta se fechava. Isso se repetiu várias vezes até que chegou a nossa vez. Bateram na porta do nosso quarto e quando nós perguntamos quem era o silêncio foi absoluto, nós abrimos a porta e vimos um garrafão de água 10 litros no chão.
Não entendemos e a primeira coisa que pensamos é que alguém tinha deixado aquilo na nossa porta de sacanagem. Podiam estar com raiva por causa da noite anterior. Logo em seguida, vimos subir a escada um rapaz com um garrafão e perguntamos o que era aquilo. Como ele não entendia inglês muito bem e nem falava, foi difícil conversar e entender finalmente que aquilo era água para tomar banho.
Bizarro demais. É costume indiano tomar banho de balde e todos os hotéis possuem no banheiro um banquinho, um balde e uma espécie de jarro com alças para pegar água do balde e jogar na cabeça e no corpo, Todos os banheiros tem uma torneira baixa com água quente e outra com água fria, para esse fim.
Eu e minha irmã nos entreolhamos, olhamos para o rapaz, com aquele peso enorme nos ombros e pensamos que o pobre era explorado por um patrão sem escrúpulos. Ele tinha que levar um galão daquele m cada quarto e o hotel tinha quatro andares. Nós não sabíamos se ficávamos com pena ou com raiva.
De qualquer modo, seria impossível para nós duas carregar uma garrafa de 10 litros e levar para dentro do banheiro. Era impossível e tudo era muito bizarro. Para eles era normal aquele cortiço que se fantasiava de hotel gerido por um Mister Gajendra Manadhar que não fazia nada, que permitia que os hóspedes ficassem pendurando toalhas e roupas nas varandas e no corrimão da escada.
Depois desse episódio chocante pegamos as mochilas e descemos para o saguão. Sabíamos que o check in no Ganesh Himal era às 12 horas e ainda era 7, mas não era possível ficar neste hotel por mais um minuto sequer. O dono do hotel, gerente, ou seja, lá o que ele era, ficou muito bravo quando nós dissemos que o hotel não valia nem cem rupias e que achamos absurdo não termos sido avisadas de que nem água tinha para se tomar um banho. Era obrigação dizer isso. Comentamos que o ventilador mal funcionava a TV não ligava, e lamentamos sobre a sujeira e o barulho dos hospedes, Ele disse que se quiséssemos limpeza e silencio que fossemos para um hotel melhor. Ele era arrogante e a Roberta disse que o hotel nem valia o que pediam, pois parecia uma favela, pois as pessoas penduravam roupa em qualquer lugar, ficavam com as portas abertas falando, falando e fazendo barulho, comendo nos corredores. Ele não gostou do termo “slum” (favela) e disse que se não quiséssemos pagar que estaria tudo bem. Fingiu-se de ofendido e a Roberta lhe perguntou se tinha certeza de que não queria o pagamento e ele disse que tinha. Ela deu metade da diária e fomos embora.
Quando nós chegamos no Ganesh Himal, contamos a Mister Karma o que acontecera e ele ficou desolado. Pediu um milhão de desculpas, disse que não tinha ido até lá e sim havia telefonado para o vizinho. Confessou que não conhecia bem o hotel, e que vira ter sido reformado recentemente. Realmente hotel estava pintado por fora, mas era sujo por dentro. Ele pediu mais e mais desculpas e disse que nunca mais iria indicar a mais ninguém. Nem entramos muito em detalhes, não contamos do garrafão de água e nem da sujeira, e sim apenas da bagunça e barulheira.
No fim nos arrependemos de ter contado para ele porque ele ficou muito chateado, mas nós o deixamos tranquilo dizendo que sabíamos que ele nada sabia que estava tudo bem que tinha dado para dormir e que a gente tinha vindo correndo para o hotel dele para tomar o café esperar o quarto ficar vago.

Fomos tomar o desjejum no jardim e deixamos as malas ali na recepção. O quarto ficou pronto antes da hora a pedido de Mr Karma. Finalmente pudemos nos banhar e descansar. Mais tarde fomos nos despedir da Durbar Square e fomos almoçar no Mitho Restaurant.
Fizemos algumas compras e houve um episodio engraçado porque nós queríamos comprar chás para trazer para nós e amigos, mas na região do Thamel, uma região bem turística de Katmandu, cobram tudo muito caro. Estávamos indo de loja em loja, pesquisando os preços e vantagens quando entramos numa em que o dono estava sob a influência de substâncias psicotrópicas, aquela que deixa a pessoa pilhada e ansiosa, e ele começou a vender as coisas da loja cheia de turistas a preços absurdamente baratos. Nós reparamos que ele estava alterado e tentamos dissuadi-lo de vender o chá pela metade do preço, mas ele disse que ele era o dono e que estava liquidando. Posso dizer que ele teve ótimas vendas naquele dia, eu mesmo comprei várias bolsinhas de chá e a Roberta também.
No outro dia voltaríamos para a Índia e depois do café e demos uma volta por todo o hotel. Tiramos muitas fotos e encontramos com Mr Karma e seu irmão, Mr Dorje. Ficamos passeando pelo hotel e foi nesse dia que ficamos sabendo da história da família. O hotel era dos pais e eles tinham revitalizado. Contaram-nos que jardineiro que sempre víamos cuidando das flores, já era muito velho e deveria ter se aposentado, mas queria continuar trabalhando. Permitiam porque sabiam que se não o deixassem ficar, morreria de tristeza.
Contaram-nos várias histórias do hotel e da família e foi uma manhã bem agradável. Tiramos fotos e Mister Karma falou que tinha simpatizado conosco desde o primeiro dia, no salão do café da manhã e acreditava que tivéssemos uma ligação espiritual. Perguntou se acreditávamos em outras vidas, vida após a morte e tinha certeza que nós tínhamos nos conhecido em outras vidas.

Quando fomos fechar a conta do hotel, a mulher que nos atendeu era a mesma de sempre que até hoje não sei se era esposa de um deles ou irmã, se desculpou por não ter podido nos alojar um dia antes, era ela quem cuidava de todo dinheiro; da parte financeira do hotel; fazia câmbio para os turistas, qualquer dúvida mais importante era ela quem resolvia e chegamos a vê-la várias vezes colocar maços de dinheiro em uma bolsa e sair de moto com toda a grana. Ela perguntou se queríamos preencher um livro de turistas onde todos contavam o que tinham achado do hotel e falavam algo sobre a experiência na estadia. Pediu para colarmos nossas fotos porque achou que talvez nós tivéssemos fotos sobrando, já que todos os turistas que vinham para o Nepal trazem fotos para o visto e algumas vezes sobram. Fizemos nosso relato, colamos a foto no livro, pagamos e ela veio com Katas com símbolos auspiciosos e as colocou em torno dos nossos pescoços, nos abraçou, fez reverencia. Foi muito bacana porque as katas, que são lenços oferecidos em demonstração de respeito, afeto, amizade, votos auspiciosos e gratidão. Normalmente são oferecidas cerimoniosamente com a cabeça baixa e as palmas das mãos unidas. Foi muito legal e alguns hospedes ficaram assistindo aquela celebração.
Abraçamos a todos e pedimos para chamarem um táxi. Ela chamou Mr Karma e ele chegou com Mr Dorge e disse que o carro do hotel nos levaria ao aeroporto. Agradecemos muito, nos despedimos mais uma vez e entramos na mini van do hotel depois de agradecer a hospitalidade de todos, incluindo o porteiro.
Tivemos tratamento VIP e nos divertimos com o motorista a caminho do aeroporto. Ele se despediu de nós e disse que desejava uma boa viagem. Pegamos um carrinho e fomos para a fila de embarque.
Havia uma confusão enorme naquele aeroporto internacional que mais parecia uma estação rodoviária de cidade de interior. Contar o que aconteceu no saguão daria mais um post, especialmente por causa de um a dupla russa que queria furar a fila a todo custo e era sempre impedida por nós.
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